" Era um jogo que fazia de vez em quando, desde que tinha aprendido sobre a noção de multiverso: a vida de uma pessoa não era exatamente uma linha, mas uma árvore, e cada decisão era um galho divergente, resultando numa pessoa divergente. Ela gostava da ideia de que havia centenas de Kates diferentes, vivendo centenas de vidas diferentes.
Talvez em uma dela não houvesse monstros.
Talvez sua família ainda estivesse inteira.
Talvez ela e sua mãe nunca tivessem saído de casa.
Talvez nunca tivesse voltado." - Pág. 14
" Depois de um tempo, as vozes no outro cômodo silenciaram e August foi deixado a sós com seus pensamentos. Ele fechou os olhos, procurando paz, mas, como sempre, o silêncio logo foi quebrado, com o tremor distante de disparos ecoando em seu crânio - um som que invadia todos os momentos de tranquilidade.
Tudo começou com uma explosão.
Ele virou para o lado e tirou o som de debaixo do travesseiro. Enfiou os fones nos ouvidos e apertou o play. A música clássica cintilou, alta, brilhante e maravilhosa, e eles se afundou na melodia enquanto os números vagaram por sua mente.
Doze. Seis. Quatro.
Doze anos desde o Fenômeno, quando a violência começou a tomar forma e a Cidade V desmoronou.
Seis anos desde a trégua que a restaurou, não como uma cidade, mas como duas.
E quatro desde o dia em que ele despertou no meio de um refeitório sendo isolado com uma fita de cena de crime." - (August) - Pág. 26
" Ele lançou um objeto no ar e August o pegou, contraindo-se com o contato. Era um medalhão da Cidade Norte, ornando com um V de um lado e uma série de números do outro. O medalhão de ferro ardia contra a mão de August. O metal puro repelia monstros: os corsais e os malchais não conseguiam tocar naquilo; os sunais só não gostavam (todos os uniformes da FTF levavam metal pro, mas o dele e o de Leo haviam trançados com uma liga metálica)." - Pàg. 37
" - Você se alimentou recentemente?
Ele engoliu em seco, mas as palavras já estavam subindo por sua garganta. Havia uma diferença entre a incapacidade de mentir e a necessidade de falar a verdade, mas a omissão silenciosa era um luxo que ele não tinha quando se tratava do irmão. Quando um sunai fazia uma pergunta, ele exigia uma resposta.
- Não estou com fome.
- August - Leo respondeu. - Você está sempre com fome." (Leo e August) - Pàg, 38
" Você precisa acabar com eles logo de cara", seu pai havia dito certa vez. Claro, ele estava falando de monstros, não adolescentes, mas ambos tinham muito em comum. Obedeciam a uma mentalidade de colmeia; pensavam e agiam em grupos. Tanto cidades como escolas eram microcosmos, e escolas pequenas tinham seu próprio e delicado ecossistema." - Pág. 67
" August se encolheu. As luzes no teto eram brilhantes demais; o raspar das cadeiras, agudo demais. Tudo estava acentuado, como se o volume da sua vida estivesse no máximo, e não de uma forma empolgante. Os barulhos eram altos; os cheiros, fortes; e a dor, contante. Mas piores dos que os sentidos eram as emoções. Agitação e raiva queimavam sob sua pele e em sua cabeça. Todos os comentários e pensamentos pareciam uma faísca em lenha seca." - Pág. 93
" August se manteve completamente imóvel enquanto a energia do homem percorria seu corpo. Não era uma sensação elétrica, poderosa. No máximo, fazia com que se sentisse...real. A raiva, o enjoo e a tensão haviam desaparecido, partido para longe. Ele parecia simplesmente completo.
Era assim que os humanos se sentiam?
Então ele abaixou os olhos para o cadáver e uma tristeza percorreu seu corpo feito um calafrio. subitamente, a normalidade pareceu distante. Era um golpe cruel do universo que ele apenas se sentisse humano depois de cometer algo monstruoso, pensava August. O que o fez se perguntar se aquele breve vislumbre de humanidade não passava de uma ilusão, um eco da vida que havia tomado. Uma mentira." - Pág. 117
" No começo, ela havia implorado para voltar para casa, para ficar com ele, mas, com o tempo, desistira de pedir. Não porque não quisesse mais, e sim porque aprendera que súplicas não funcionavam com Callum Harker. Eram um sinal de fraqueza. Então Kate aprendeu a enterrar as coisas que a tornavam fraca. As coisas que a faziam parecer a mãe.
Ela devolveu o porta-retrato ao criado-mudo e olhou para as próprias mãos. Seus pulmões ainda doíam por causa da fumaça, mas suas mãos haviam parado de tremer. Ela examinou o sangue negro que manchava seus dedos, não com horror, mas com uma determinação fria.
Ela era a filha de seu pai. Uma Harker.
E faria de tudo para provar isso." ( Kate Harker) - Pág. 125
" Talvez fossem os comprimidos suavizando suas arestas. Talvez... Mas ainda assim havia algo em Freddie. Algo... apaziguador, contagiante, familiar... Em um auditório cheio de olhares, foi o dele que ela sentiu. Em uma sala repleta de alunos aprendendo mentiras, ele rabiscava a verdade nas margens do caderno. Numa escola que se apegava à ilusão de segurança, ele não tinha medo de falar abertamente sobre a violência. O lugar dele não era ali, como o dela não era, e o estranhamento em comum a fazia sentir que o conhecia." - Pág. 147
" - Acredita mesmo nisso, não é? Que esta cidade gira em torno do que você quer porque tem dinheiro e poder, e todo mundo tem medo de dizer não para você. - Ele se aproximou. - Sei que é difícil acreditar, mas nem tudo nesse mundo é sobre você. - Ele recuou. - Sinceramente, pensei que fosse melhor do que isso. Acho que estava errado." ( August para Kate) - Pág. 167
" Monstro.
Era ridículo - absurdo, paranoico -, mas lá estava a palavra. De repente, seus pensamentos voltaram à foto borrada na página da Colton, à falta de imagens em qualquer lugar no disco externo, ao nome falso, às palavras rabiscadas nas margens do caderno, aos pais superprojetores, ao medalhão roubado, à recusa a tocar para ela, às criticas e à maneira como a encarava, como se dividissem em segredo. Ou como se estivesse guardando um.
Sunais, sunais, olhos de carvão.
com uma melodia sua alma sugarão. [...]
Você já viu um monstro de perto?
Kate se recostou no banco.
Freddie Gallagher não era um aluno comum.
Ele sequer era humano." - Pág. 169-170
" Sunai... A simples palavra bastava para agitar as outras criaturas e irritar seu pai. Mas não parava por aí. Os sunais eram raros - muito mais do que os corsais ou malchais - , e mesmo assim deixavam Harker apreensivo. Provavelmente por causa dos catalisadores. Os corsais pareciam surgir de atos violentos, mas não letais, equanto os malchais se originavam de homicídios. Os sunais, pelo que diziam, vinham dos crimes mais sombrios de todos; bombardeios, tiroteios, massacres, eventos que não tiravam apenas uma, mas muitas vidas. Toda a dor e a morte se juntando em algo verdadeiramente terrível. Se o catalisador de um monstros era um indício de sua natureza, então os sunais eram os piores seres para se encontrar no meio da noite." - Pág. 174 - 175
" Suspirou fundo, ajeitou o violino sob o queixo, o arco nas cordas e... hesitou. Ele nunca havia feito aquilo antes. Tinham sido muitos os dias em que quisera pegar o violino e simplesmente tocar. Mas nunca pudera. A música de um sunai não era tocada sem um motivo. Era uma arma que paralisava todos que a ouviam." - Pág. 206
" Havia boatos de que os corsais contavam segredos, que os murmúrios passavam a fazer sentido logo antes de matarem. Outros afirmavam que apenas repetiam os pecados que os haviam formado, sussurrando atrocidades, imitando os sons horripilantes de metal contra pele, de ossos quebrando, de gritos abafados.
Agora não era um bom momento para perder o controle. Kate se concentrou na respiração, lembrando-se de que os corsais se alimentavam de medo. Ela encarou o túnel, a lanterna vasculhando o breu, e tentou focar a visão no centro, no ponto mais escuro, que começou a se mexer." - Pág. 238
" - Por que quer tanto ser humano? Nós somos frágeis. Somos mortais.
- Vocês vivem. Não passam todos os dias sem saber por que existem sem se sentirem reais, por que parecem humanos mas não são. Não fazem de tudo para serem boas pessoas para a vida vir e jogar na sua cara que nem pessoas vocês são." - ( August para Kate) - Pág. 251
" O processo todo foi muito dolorido, mas Kate tinha de admitir: August era cuidadoso. Gentil. O máximo possível para alguém furando outra pessoa com agulha e linha. Mas era óbvio que ele não queria machucá-la, e parecia até sentir aversão àquilo tudo. Que ótimo. Um monstro sensível. Vai entender." (Kate sobre August) - Pág. 257
" - Não gosto de histórias.
Kate franziu a dela também.
- Que estranho.
- Por quê? - perguntou August.
Ela bateu as unhas no volante. O esmalte metálico estava descascando.
- Porque sim. Tipo, a maioria das pessoas quer escapar. Sair de dentro da própria cabeça. Da vida real. História são o jeito mais fácil de fazer isso." - Pág. 280
" - Os sunais são resultado de tragédias, atos de terror tão sinistros que abalam o equilíbrio cósmico. Leo surgiu de suicídios em massa em uma seita, nas primeiras semanas do catalisador. Essas pessoas pensavam que o mundo estava acabando, então se atiraram juntas de um terraço. Mas não foram sozinhas; levaram junto suas famílias, pais, filhos...
Kate respirou fundo.
- Meu Deus.
- É por isso que meu irmão é tão metido a justiceiro - ele disse em voz baixa. - -Com Ilsa foi diferente." - Pág. 281
" - Por que tem tantas sombras no mundo, Kate? Não deveria ter a mesma quantidade de luz?
- Não sei, August.
- Não quero ser um monstro.
- Você não é um - ela disse. As palavras saíram automáticas, mas enquanto dizia, Kate percebeu que acreditava nelas. August era um sunai, nada mudaria isso, mas não era perverso, cruel ou monstruoso. Era apenas alguém que queria ser outra coisa, algo que não era.
Kate entendia a sensação.
- Dói - ele sussurrou.
- O quê?
- Ser. Não ser. Me entregar. Me conter. Não importa o que eu faça, tudo dói.
Kate inclinou a cabeça para trás, apoiando-a na banheira.
- O nome disso é vida, August - ela disse. - Você queria se sentir vivo, certo? Não importa se é monstro ou humano. Viver dói." - (August e Kate) - Pág. 315
" A dor havia passado por um tempo, suprimida pela loucura e pela alegria, mas agora as marcas voltaram a queimar em sua pele, pulsando abrasadoras, e os disparos ecoavam em sua mente como uma artilharia. Ele pressionou a testa ardente contra os ladrilhos frios, a pele chiando como fogo em água quando o frio encontrou a febre.
Seu corpo finalmente resfriou e ele se deixou cair contra a lateral da banheira, a água fria subindo até a coluna e envolvendo suas costas." - Pág. 321
" - Você vai deixar tudo dela - advertiu Sloan. Seu tom era frio e afiado, os lábios mortos sobre os dentes. O calor fulgurou sobre a pele de August. - Você pode pôr um fim nisso - disse o monstro voltando a atenção para a barra. August sabia que era verdade, mas também sabia que, no momento em que fizesse isso, o malchai cravaria o metal em seu peito e cortaria o que havia sido carne e se transformara em fumaça e sombra, até trespassar seu coração ardente." - Pág. 341
" Seu corpo não dava mais ouvidos à sua mente. A luz vermelha ainda dançava sobre sua pele e Kate se surpreendeu em como uma vida podia se esgotar tão fácil. Como a morte podia estar contida em um toque." - Pág. 352
" Ilsa se voltou para a janela e olhou na direção do céu e da Fenda. Ergueu os dedos para vidro ainda rachado e, na escuridão, desenhou uma estrela, e mais outra, e outra. August envolveu os ombros da irmã com os braços e ficou observando enquanto ela enchia o céu." - Pág. 367
" August não era humano.
Não era feito de carne e osso, ou poeira de estrelas.
Ele era feito de trevas.
Leo tinha razão sobre uma coisa: estava na hora de August aceitar quem era.
E se entregar." - Pág. 374 - 375